Um litro de água a 4 oC pesa 1 kg. Podemos confirmar essa informação sem dificuldades. A medição neste caso depende de acesso ao mesmo material (neste caso água, uma substância quimicamente definida e acessível), um frasco com volume exatamente conhecido, balança, controlador de temperatura, termômetro – tudo calibrado - e pronto. Qualquer variabilidade estaria associada à incerteza de medição. Mas sabemos que água não é tudo igual. Ou melhor, H2O é H2O, mas o produto “água” é obtido a partir de purificação de água potável de abastecimento público, por métodos sequenciais cuja etapa final (destilação, troca iônica e/ou osmose reversa, com ou sem ultrafiltraçãoµm, armazenamento sob luz UV, esterelizada, etc) podem impactar no resultado final desejado. E por isso, compêndios farmacêuticos (como Farmacopeias) e científicos (Manual de Química e Física) descrevem minunciosamente seus requerimentos para as substâncias – incluindo água, assim como é esperado ser muito bem regulamentada a qualidade de substâncias que são destinadas a uso farmacêutico. E a qualidade de um material, de um resultado, começa na concepção, um conceito conhecido como qualidade baseada no projeto (QbD, do inglês Quality by Design), e que percorre o processo de produção e validações, de processo e analítica, de modo a assegurar qualidade, segurança eficácia, de modo reprodutível.
A variabilidade de resultados podem advir de erros das instrumentações de medida (como a variação de volume em um copo-medida, ou massa em uma balança), mas a não-reprodutibilidade pode ser devido a procedimentos e protocolos mal documentados ou mal reportados. Por isso, deve-se documentar e reportar os métodos e equipamento em detalhes, como fabricante, modelo, grau de qualidade, parâmetros físico-químicos, temperatura, tempo, composições de misturas, corrente elétrica, umidade, dentre outros. Café não se extrai com água gelada, e conforme a quantidade de água fica ralo ou forte. Gosto não se discute, nem reprodutibilidade, mas para este se requer protocolo detalhado, receita bem anotada. Para material não-comercial, pode-se depositar o material biológico em bancos públicos[1].
A reprodutibilidade é uma questão a ser considerada nos mais diversos campos da ciência, desde preparo de material até processamento de dados. Em cristalografia – um dos campos da biologia estrutural - variáveis na cristalização (pH, tampão, co-soluto, método de cristalização, temperatura) ou mesmo durante a coleta de dados (uso de termoprotetor, temperatura de medida, etc) podem resultar em conformações diferentes, ligantes diferentes, posição diferente dos ligantes – água alias é um ligante importante e a determinação de sua interação pode ser afetada por variáveis físicas e químicas[2]. Por isso, reportar o método de obtenção de amostra proteica por exemplo (clone, purificação, armazenamento, preparo dos cristais, método de difração, método de refinamento) é importante para garantir a reprodutibilidade[3]. Devido o grande número de variáveis físicas, químicas e instrumentais em uma medição cristalográfica, a incerteza de medição associada à difração de raios-X parecer indeterminável para muitos. Entretanto, nosso grupo demonstrou sua reprodutibilidade[4].
Reprodutibilidade não é um mistério, e sim um consenso. Reprodutibilidade é garantida por métodos validados, e existem regras internacionais, como por exemplo o Conselho Internacional para Harmonização (ICH, do inglês International Conference of Harmonization), que regulamentam processos e validações (bio)analíticas[5]. As editorias de revistas científicas também exigem dos cientistas que seja feita documentação adequada de reagentes e métodos, assim como depósito de resultados originais em repositórios ou apresentar junto à submissão dos mesmos para publicação, assim como descrever adequadamente as seções experimentais. Não há mais limitação pelo espaço finito de papel, mas sim podendo ser colocado na forma de material suplementar eletrônico. “Há muito espaço lá embaixo”, já disse o prêmio Nobel de física Richard Feynman em 1959 ao antever a nanotecnologia.
A disponibilização dos resultados científicos originais em bases de dados abertas[6] é muito importantes para os que farão uso de tais resultados além de ler o artigo científico que o reporta. Outras técnicas em biologia estrutural também apresentam uma grande diversidade de fontes de incertezas, que devem ser minimizadas por meio de calibrações, enquanto a reprodutibilidade deve ser adicionalmente assegurada pela adequada documentação metodológica. Em bioinformática, além da descrição dos métodos e pacotes de distribuições disponíveis para a comunidade, a disponibilização dos programas em formas abertas,[7], para a comunidade usar e/ou modificar permite reprodutibilidade, dupla-checagem pelos pares, além de construção coletiva de novas versões melhoradas. Almejando a ciência aberta além de reprodutível, no fim, ainda é possível tornar todo o trabalho disponível em primeira mão por meio de pré-publicação do manuscrito antes de sua versão final publicada em revista científica[8].
A ciência deve ser feita preocupando-se com a humanidade. Enquanto indivíduo, alguns cientistas querem visibilidade para si, notoriedade, produtividade em massa, e por vezes isto gera pressa, desatenção, imprecisão. De outra sorte, os cidadãos – incluindo demais cientistas - querem fazer uso daquilo que vem do exato, do reprodutível.
Pensar continuamente em reprodutibilidade é pensar em comunidade, é se importar com os outros, é dar liberdade aos dados. Conforme o escritor americano David Foster-Wallace disse em seu famoso discurso de formatura no Kenyon College (2005) intitulado “Isto é água”,
“O tipo de liberdade realmente importante envolve atenção, consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se preocupar com outras pessoas e de se sacrificar por elas repetidamente, de inúmeras maneiras mesquinhas e nada sexy, todos os dias. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado e entender como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida desenfreada, a sensação constante e torturante de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.”
Não chega a ser difícil contribuir para uma ciência aberta, transparente, reprodutível. Não falta espaço para tornar isso possível. Basta vontade.
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