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Alfabetização cientifica na era digital

A alfabetização científica é uma ferramenta para melhorar a compreensão pública da ciência, encorajando a aplicação de conhecimento científico nas decisões cotidianas e promovendo práticas de pesquisa reprodutíveis e transparentes para fortalecer a confiança na ciência.


Por Natali Lourenço Nascimento


Imagem de Freepik
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Em um estudo realizado pelo Instituto de Internet da Universidade de Oxford em 2019, foi observado que conteúdos falsos ou extremistas têm uma influência surpreendente nas redes sociais, gerando mais interações do que informações verdadeiras. Isso é particularmente evidente em plataformas populares como o Twitter e o Facebook. Outro estudo realizado por pesquisadoras de Juiz de Fora no estado de Minas Gerais, destacam o alto índice de utilização do WhatsApp e do Facebook no Brasil. De acordo com os dados, 74,1% dos entrevistados afirmam que usam o aplicativo de mensagens móveis mais de uma vez por dia, e 55,4% declararam ter a mesma frequência de acesso ao Facebook.


Além disso, frequentemente nos deparamos na literatura acadêmica com pesquisas que produzem resultados com tamanhos de efeitos insignificantes, ou cometem o erro de assumir que a inversão de uma hipótese é verdadeira, o que, na verdade, não se aplica a muitos campos do conhecimento, à exceção da matemática. Para ilustrar essa diferença, podemos considerar um exemplo simples: Imaginemos que estamos avaliando um grupo de pacientes e chegamos à conclusão de que o uso da homeopatia está associado à melhoria da saúde mental em determinadas condições. Não podemos concluir automaticamente o oposto dessa afirmativa como válida, que toda melhoria na saúde mental está relacionada ao uso da homeopatia, pois existem outras intervenções e fatores que também influenciam o bem-estar mental das pessoas, como práticas de autocuidado, terapias convencionais, entre outros.


O problema ocorre quando essas conclusões são divulgadas de maneira sensacionalista ou imprecisa na mídia, criando uma falsa autoridade em torno de uma única perspectiva. Portanto, é vital abordar essas questões com um olhar crítico e considerar todas as variáveis envolvidas antes de tirar conclusões definitivas, assim como a verificação das fontes e dos responsáveis sobre a informação. Muitas vezes, não existe a reflexão sobre esses estudos antes de compartilhada a informação, e são negligenciadas informações fundamentais. Quem é a amostra do estudo? Qual é a idade? Nacionalidade? Etnia? Renda? Sexo? O estudo foi randomizado? Qual teste estatístico foi usado e como os dados foram tratados? Existem mais fatores que poderiam influenciar os resultados desse estudo diretamente? Qual é o tamanho da amostra?


Por trás desse fenômeno, existe uma dinâmica complexa que gira em torno de como as postagens com alto engajamento são promovidas nas redes sociais. Isso acontece graças aos algoritmos de relevância que impulsionam essas mensagens. Essa estratégia não se limita apenas a grupos públicos; ela também se estende aos grupos privados em aplicativos de mensagens instantâneas. Esse alcance expandido cria um ambiente propício para a disseminação de desinformação, já que as postagens que geram mais interações são promovidas progressivamente, alcançando um público cada vez maior.


Para mitigar o avanço da desinformação tanto no meio acadêmico como fora dele, uma forma para lidar com esses impasses seria a melhoria do Letramento ou Alfabetização Cientifica. O termo "Alfabetização Científica" entrou no vocabulário educacional em 1958, através de um artigo escrito por Paul Hurd chamado "Scientific Literacy: Its Meaning for American Schools." Ao longo do desenvolvimento do conceito de Alfabetização Científica, também houve avanços significativos nas tentativas de medir esse conceito na população. Uma dessas tentativas foi realizada por pesquisadores sul-africanos, Laugksch e Spargo, em 1996, quando criaram o Test of Basic Scientific Literacy, ou TBSL. Este teste consiste em uma série de questões contextualizadas nas áreas de Química, Física, Biologia e Saúde, apresentando situações do dia a dia que podem estar corretas ou incorretas do ponto de vista científico. Os participantes são convidados a dar sua opinião sobre cada questão.


O TBSL foi criado com base na visão de Alfabetização Científica de Jon D. Miller, cientista atuante no Centro de Estudos Políticos da Universidade de Michigan, que argumentava que um indivíduo precisa ter competências mínimas em três áreas para ser considerado alfabetizado cientificamente: entender os conteúdos da Ciência, compreender a natureza da Ciência e perceber o impacto da Ciência e da tecnologia na sociedade e no meio ambiente. Em 1975, Benjamin Shein propôs que a Alfabetização Científica pode ser dividida em três dimensões: Prática, Cívica e Cultural. A dimensão Prática está relacionada à compreensão do cotidiano e à resolução de problemas comuns, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. A dimensão Cívica envolve a capacidade de aplicar conhecimentos científicos para compreender a influência da Ciência no contexto político, social e ambiental. Por fim, a dimensão Cultural refere-se a cursos, debates e publicações direcionados ao público sem formação científica que busca adquirir conhecimento nessa área.


Uma prática que pode ser desenvolvida tanto em salas de aula, como em qualquer meio educacional que se proponha a elaborar e/ou desenvolver habilidades em pensamento crítico e alfabetização científica na população, é o treino dessas habilidades através de ensaios com foco argumentativo. Neste caso, deve ser dado ao aluno o conhecimento sobre o conceito de evidência (precede a prova das afirmações), validade argumentativa, se é um argumento forte ou fraco, reconhecimento de falácias e a estrutura de um parágrafo argumentativo.


Além disso, pode ser acrescentado a proposta pedagógica, o ensino de práticas indutivas, como tipificação dos dados, limitação do campo-abrangência e constituição de amostra, explicação e formulação de hipóteses (explicar a evidência, ser consistente com os fatos abordados e ser plausível considerando o contexto) e investigação (planejamento da investigação com o controle de variáveis, busca ativa por evidências que suportem ou refutem as hipóteses abordadas e ceticismo reflexivo ao evitar vieses na interpretação dos dados). Assim, com tais técnicas educacionais e habilidades sendo desenvolvidas, é possível que haja cada vez mais a introdução de novos membros na comunidade científica para subsidiar estratégias que auxiliem o debate sobre políticas que promovam a cultura científica contra à desinformação e práticas de pesquisa mais transparentes, cooperativas e reprodutíveis.


A participação ativa no debate público sobre os caminhos da ciência também envolve a discussão da crise da reprodutibilidade de experimentos. Muitas vezes, o estudo é publicado e são aceitas verdades sobre tal experimento, porém eles não fornecem informações para que ele seja reproduzido em outras situações. Não há informação sobre como foi realizada a transformação das variáveis, limpeza de dados, intercorrências com o piloto e ajustes, códigos aos quais as análises foram submetidas e quais ajustes foram feitos no script durante o estudo, processo de divulgação e coleta etc. O processo do experimento é tão importante quanto seus resultados, pois é através da reprodução deste estudo que se pode realizar inferências válidas sobre um determinado fenômeno. E tal crítica se estende também aos processos de revisão sistemática e meta-análise, pois independente da escolha do software de análise, se o pesquisador/grupo de pesquisa não se atenta a como foram feitos os estudos, de nada vale um conjunto de “evidências” coletados de forma duvidosa com uma metodologia pouco clara e fraca significância estatística.


A necessidade de promover o letramento científico e estimular a comunicação pública da ciência é reforçada pelo recente decreto que instituiu o Programa Nacional de Popularização da Ciência (Pop Ciência) e o Comitê de Popularização da Ciência e Tecnologia (Comitê Pop), no dia 25 de outubro de 2023. O programa enfatiza a importância de desenvolver a cultura científica, combater a desinformação e promover o engajamento do público nas questões científicas. Além disso, ao considerar o impacto das redes sociais na disseminação de informações, o programa propõe o uso inovador de tecnologias digitais para promover a inclusão digital e a divulgação confiável da ciência. Portanto, o estímulo ao letramento científico e à participação ativa no debate público sobre ciência e tecnologia são estratégias fundamentais para enfrentar os desafios atuais relacionados à confiabilidade e reprodução de estudos científicos, conforme discutido anteriormente.


Referências

  1. Zhu M, Liu OL, Lee HS. The effect of automated feedback on revision behavior and learning gains in formative assessment of scientific argument writing. Computers & Education. 2020;143:103668. doi:10.1016/j.compedu.2019.103668.

  2. BAPTISTA, Erica Anita, et al. A circulação da (des)informação política no WhatsApp e no Facebook. Juiz de Fora, PPGCOM – UFJF, v. 13, n. 3, p. 29-46, set./dez. 2019.

  3. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Decreto Nº 11.754, de 25 de outubro de 2023. Atos do Poder Executivo. 26/10/2023;204(1):19.

  4. Miller, Jon D. Scientific Literacy: A Conceptual and Empirical Review. Daedalus, Vol. 112, No. 2, Scientific Literacy (Spring, 1983), pp. 29-48. Publicado por: The MIT Press em nome da American Academy of Arts & Sciences. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20024852.

  5. VIZZOTTO, Patrick Alves, e DEL PINO, José Cláudio. O uso do teste de alfabetização científica básica no Brasil: Uma revisão da literatura. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (Belo Horizonte), 22, 2020.  


 

Sobre a autora


Natali Lourenço Nascimento

Mestranda em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), cursando MBA em Data Science e Analytics na USP/Esalq, especialista em Auditoria e Compliance em Saúde pelo Centro Universitário São Camilo, bacharel em Enfermagem pelo Centro Universitário das Américas, membro do grupo de pesquisa NBS (No-Budget Science) focando no desenvolvimento de habilidade extra-acadêmicas (softskills e hardskills) em doutorandos e egressos, participante da Rede  Brasileira de Reprodutibilidade (BRRN), membro da CIBA (Centro Ibero-americano) vinculado à Cátedra José Bonifácio, focando na investigação sobre a cooperação entre Europa e América Latina em tempos de polarização global e participante da FORRT (Framework for Open and Reproducible Research Training). E-mail: natali.lourenco.nasc@gmail.com ORCID: 0000-0002-7905-1171 

Raquel Freitag

Linguista, com mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe, atuando nos programas de Pós-Graduação em Letras e em Psicologia.


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