A metaciência chega à maioridade
- Olavo Amaral
- 26 de ago.
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Atualizado: 1 de set.
2025 é o ano em que a metaciência virou mainstream. O que começou (com esse nome contemporâneo, já que o conceito de fazer ciência sobre ciência é quase tão antigo quanto a própria ciência) como um movimento de pesquisadores preocupados com a confiabilidade e a eficiência do processo científico se tornou um item importante na agenda de agências de fomento, instituições e governos pelo mundo afora.
No Metascience – congresso que congrega a comunidade interessada em fazer pesquisa sobre pesquisa – a impressão de transição é evidente. Se na primeira edição do congresso, em 2019, a maior parte das palestras era de pesquisadores voltados à questão da reprodutibilidade, com forte presença da área da psicologia, a edição do mês passado em Londres tinha a presença de ministros de Estado, grandes agências de fomento, empresas da área de tecnologia, entidades filantrópicas e outros atores institucionais.
Parte da transição é a resultante da mudança na organização do congresso – que depois de três edições a cargo do Center for Open Science, desta vez foi realizado em parceria com o Research on Research Institute da University College London, que sempre teve um viés mais voltado a instituições. Mas parte desse movimento também é resultado de que, para muita gente que maneja verbas de pesquisa ao redor do mundo, caiu a ficha de que precisamos estudar nossos próprios processos para tentar melhorá-los.
O exemplo mais óbvio é a UK Research and Innovation (UKRI), agência responsável pela verba pública de pesquisa do Reino Unido, que desde o ano passado conta com uma unidade de metaciência que desenvolve projetos próprios e financia pesquisadores interessados em estudar questões de interesse da agência. Mas inúmeros outros financiadores estavam presentes apresentando seus próprios dados e ideias para melhorar processos – com destaque para entidades filantrópicas como a Open Philanthropy e a Fundação LaCaixa. O Brasil ainda tem presença tímida no cenário, mas vale notar que a FAPESP se fez presente – não diretamente, mas através de dados obtidos pelo GEOPI da Unicamp estudando os pareceres da agência.
Isso não quer dizer que a metaciência e ativismo sobre reprodutibilidade também não venham crescendo – e em grande parte com dinheiro público. As Redes Nacionais de Reprodutibilidade – incluindo a RBR – se encontraram e jantaram juntas com a conta paga pela UK Reproducibility Network, que desde 2021 conta com um financiamento substancial da Research England para desenvolver suas atividades. Como evento satélite do evento, houve também o encontro dos projetos TIER2, OSIRIS e iRISE – financiados pela primeira edição da chamada HORIZON-WIDERA da Comissão Europeia, focada em projetos de pesquisa para melhorar o panorama de reprodutibilidade em pesquisa.
O fato de dinheiro público estar sendo injetado nessas iniciativas para melhorar práticas de pesquisa não significa que o lado comunitário da empreitada tenha sido abandonado. As Redes Nacionais seguem se organizando entre si de forma autônoma, e várias delas ainda são iniciativas sem financiamento institucional, mantidas pela energia de voluntários entusiasmados. E mesmo os três projetos financiados pelo HORIZON-WIDERA acabaram juntando forças informalmente, mesmo que isso não estivesse previsto na chamada, pela razão óbvia de que, com objetivos em comum, trabalhar separados não faz muito sentido.
A chama do ativismo comunitário pode não ter se extinguido, mas a impressão é que fica é a de que o movimento de reforma para tornar a pesquisa mais reprodutível formado a partir da atuação de pesquisadores independentes nas últimas duas décadas chegou à maturidade – e, pelo menos na Europa, ganhou projeção, financiamento e interlocução ampla com instituições e agências de fomento e regulação da pesquisa ao redor do continente.
A impressão de institucionalização é reforçada por um simpósio realizado na semana seguinte na Unesco, em Paris, sobre monitoramento da ciência aberta e de seu impacto, organizado em parceria com iniciativas europeias como PathOS, OSMI e OpenAire. O compromisso da agência das Nações Unidas com a Ciência Aberta é evidente desde sua recomendação oficial sobre o tema em 2021, que definiu o conceito para muitos países. E fica evidente também pelo esforço de monitoramento desenvolvido desde então, que tem acompanhado ações em prol da causa nos 194 estados-membro que assinaram a declaração.
Em termos de ações nacionais, a Europa ainda parece liderar o cenário. Mas representantes de países tão diversos quanto China, Arábia Saudita e Costa do Marfim estavam no programa do evento, descrevendo seus esforços para estimular e monitorar práticas de ciência aberta. A OSMI tem grupos de trabalho liderados por pesquisadores da Colômbia, Nigéria, Sudão, Índia e Botswana. E até os EUA, em pleno governo Trump, lançaram uma ordem executiva com diretrizes para fomentar pesquisa mais reprodutível e transparente – e ainda que muita gente questione as motivações do documento por conta de onde ele veio, é difícil negar que os princípios descritos nele parecem ir na direção certa.
A maré pareceria estar a favor do que a Rede gostaria de ver acontecer, se não fosse por um pequeno detalhe: onde está o Brasil? O Metascience tinha uma dúzia de brasileiros, mas todos estavam ali ou como pesquisadores independentes ou como representantes de entidades estrangeiras. No simpósio da Unesco, repleto de gente de instituições ao redor do mundo, eu era o único representante nacional – e estava lá por conta própria, depois de ser convidado por um escocês baseado na Áustria.
Mais sintomático ainda é o fato de que, quando o mapa dos países que entregaram o relatório de monitoramento de ciência aberta da Unesco foi projetado pela representante da agência, o Brasil aparecia como um grande espaço vazio. Mais do que isso, a América Latina foi a região com menor aderência ao projeto de monitoramento: apenas 20% dos países da região entregaram o relatório no prazo.
O fato ilustra uma situação paradoxal. A América Latina é vista pelo mundo como um bastião da ciência aberta, pelo menos no que tange ao acesso a artigos científicos – área em que montamos estruturas que hoje servem de modelo para como o resto do mundo pode se livrar do monopólio das grandes editoras comerciais. Temos uma comunidade vibrante sobre o tema articulada ao redor do continente em inúmeras organizações como Scielo, Redalyc, La Referencia, AmeliCA e outras. Ainda assim, o mapa da Unesco sugere que os governos da região não parecem particularmente preocupados com isso.
A Rede está determinada a mudar esse panorama e tem aproveitado as oportunidades de diálogo existentes com órgãos governamentais sempre que possível. Desde 2023, participamos no compromisso por uma ciência mais transparente, colaborativa e reprodutível da Parceria para Governo Aberto, capitaneado pelo MCTI. A pedido da CAPES, elaboramos recomendações sobre como valorizar ciência aberta e reprodutível na avaliação de programas de pós-graduação. E na Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação no ano passado, ajudamos a colocar o tema na marra no livro de síntese do evento, mesmo que a programação oficial passasse ao largo dele.
Essas aberturas são um sinal de esperança, mas ainda é pouco: enquanto não tivermos uma política explícita de governo sobre ciência aberta, não há sequer o que monitorar, e permaneceremos na contramão de um movimento que se tornou vital na ciência internacional. É fundamental que a Estratégia Nacional de Ciência e Tecnologia, atualmente em desenvolvimento, tenha um plano claro para desenvolver uma política de Estado que aproveite o potencial existente para tornar nossa ciência mais transparente e confiável. Caso isso não aconteça, ficaremos mais uma vez para trás no bonde da história, desperdiçando nossos escassos recursos de pesquisa para gerar artigos atrás de paywalls, dados não acessíveis e contribuições científicas que não servem ao bem comum.
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